sábado, 6 de julho de 2013

“No meio do caminho tinha um pote de ouro” ou “E agora, Paul?”



Vez por outra o sujeito se vê despreocupado caminhando daqui pracolá, pensando no que vai almoçar e em como preencher essa tarde, e, sem aviso, acaba tropeçando em um pote de ouro. O meu pote de ouro de hoje veio na forma de uma postagem na internet. Seu título trazia dois nomes que, separados, são já preciosos, daquele jeito que só eles e alguns poucos outros sabem ser. Vê-los juntos em uma mesma sentença me deu arrepios e, se a figura não estivesse já tão desgastada, eu diria que foi tanto ouro a reluzir que a vista ofuscou. Sem mais: The Beatles e Carlos Drummond de Andrade.
A história é a seguinte. O ano era 1969. Tinha beatlemania na Inglaterra, um sujeito nos Estados Unidos se preparando pra pisar na Lua e o AI-5 recém-aprovado aqui (ai) no Brasil. Havia então uma revista chamada Realidade que na sua edição de março trouxe ao público brasileiro informações sobre uma nova biografia dos Beatles. Trouxe bem mais do que isso. A revista pediu a Carlos Drummond que fizesse uma tradução livre de algumas músicas do White Album dos Beatles. O resultado são as 6 poesias que eu copio abaixo, como vi primeiro em [1]. Hoje em dia todos podemos encontrar traduções dessas músicas e de todas as outras com enorme facilidade. Mas quem diria que a tradução seca e automática de “I will” para “Eu vou” é melhor do que o “Farei tudo” de Drummond? E qual é o tradutor que da nome de Melro [2], com pena preta, bico amarelo e tudo mais, ao “Blackbird”?

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OBLADI, OBLADÁ (Ob-La-Di, Ob-La-Da)
(Paul McCartney - John Lennon. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)


Desmond tem um carrinho na Praça do Mercado.
Molly vocaliza num conjunto.
Desmond diz a Molly: Por teu rosto sou vidrado
Molly diz-lhe: O quê? E pega-lhe na mão.
Obladi, obladá, a vida continua: olá,
olalá, como a vida continua!
Obladi, obladá, a vida continua… Olá,
olalá, como a vida continua!

Desmond toma o ônibus, vai à joalheria
compra anel de ouro de ofuscar
e leva-o a Molly, que espera junto à porta.
De anel no dedo, eis Molly a cantar.

Em um par de anos terão construído
um lar bacana doce que nem cana.
Um par de garotos corre pelo pátio
desse casal unido.

Olha Desmond feliz na Praça do Mercado.
Ao lado, os molequinhos ajudando.
Molly ficou em casa se enfeitando
e à noite ainda canta no conjunto.

Olha Molly feliz na Praça do Mercado.
Ao lado, os molequinhos ajudando.
Desmond ficou em casa se enfeitando
e à noite ela ainda canta no conjunto.
E se querem se divertir, obladi, obladá!

PORCOS (Piggies)
(George Harrison. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)


Viste os porquinhos
rebolando na imundície?
Para todos os porquinhos
a vida está cada vez mais difícil
e brincam sempre na sujeira por aí.

Viste os mais taludos porquinhos
em suas engomadas, alvíssimas camisas?
Olha os mais taludos porquinhos
em algazarra na imundície
com camisas alvíssimas a folgar por aí.

Em seus chiqueiros, plenamente protegidos,
ao que vai por aí nem ligam.
Nos olhos deles falta uma coisinha:
precisam mesmo é de suma porcaria.

Por toda parte há muitos porquinhos
vivendo suas porquinhas vidas.
Podes vê-los para o jantar saindo
com suas porquinhas mulherinhas
de garfo e faquinha para comer presunto.

E POR QUE NÃO AQUI NA ESTRADA? (Why don’t we do it in the road?)
(Paul McCartney - John Lennon. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)


E por que não aqui na estrada?
Não há ninguém para ver nada
E por que não aqui na estrada?

FAREI TUDO (I will)
(Paul McCartney - John Lennon. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)


Desde sempre te amei
e bem sabes que ainda te amo.
Devo esperar toda a vida?
Se quiseres – esperarei.

Se alguma vez te vi
nem sequer teu nome escutei.
Mas isso não faz diferença:
sempre a mesma coisa sentirei.

Eu te amarei por todo o sempre, sempre,
desde a raiz do meu coração
e te amarei quando estivermos juntos
e te amarei na solidão.

Quando finalmente te encontrar
tua canção envolverá o espaço.
Canta bem alto, para eu escutar.
Tudo farei para te dar o braço
pois tudo em ti me prende a mim.
Bem sabes que farei tudo
Tudo farei.

MELRO (Blackbird)
(Paul McCartney - John Lennon. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)


Melro que cantas no morrer da noite,
com estas asas rotas aprende teu vôo
A vida toda
esperaste a hora e a vez de teu vôo.

Melro que cantas no morrer da noite,
com estes olhos fundos aprende a ver
A vida toda
esperaste a hora e a vez de ser livre.

Voa, melro, voa, melro,
para o clarão da escura noite.

Voa, melro, voa, melro,
para o clarão da escura noite.

Melro que cantas no morrer da noite,
com estas asas rotas aprende teu vôo
A vida toda
esperaste a hora e a vez de teu vôo
esperaste a hora e a vez de teu vôo
esperaste a hora e a vez de teu vôo.

A FELICIDADE É UM REVÓLVER QUENTE (Happiness is a warm gun)
(John Lennon – Paul McCartney. Tradução de Carlos Drummond de Andrade)

Até que essa garota não erra muito
oi oi oi oi oi oi oi oi
Acostumou-se ao roçar da mão-de-veludo
como lagartixa na vidraça.

O cara da multidão, com espelhos multicores
sobre seus sapatões ferrados
descansa os olhos enquanto as mãos se ocupam
no trabalho de horas extraordinárias
com a saponácea impressão de sua mulher
que ele papou e doou ao Depósito Público.

Preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo
para baixo, para os pedaços que deixei na cidade-alta,
preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo

Madre Superiora dispara o revólver
Madre Superiora dispara o revólver
Madre Superiora dispara o revólver

A felicidade é um revólver quente
A felicidade é um revólver quente
Quando te pego nos braços
e meus dedos sinto em teu gatilho,
ninguém mais pode com a gente,
pois a felicidade é um revólver quente, lá isso é.


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Referências:

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Um ano e meio se passou. O país mudou e eu mudei de país. Os textos continuam acabando antes de terminarem. Esse título tá muito longo pra ter algum valor.



Ontem antes de dormir eu li uma história sobre um famoso físico dinamarquês que um dia decidiu escalar a parede de um banco em Copenhague às duas da manhã. Dois policiais viram a cena e iam interceder quando um deles interrompeu a ação: “deixa pra lá, é o Professor Bohr.” Hoje depois de acordar eu olhei para o termômetro do lado de fora da janela e notei que essa é uma manhã de 8 graus na Noruega. Sai para a universidade e ao passar em frente ao supermercado pensei em como é bom o pão que vende-se em supermercados por aqui. Lembrei então do filme “Os miseráveis” que assisti recentemente. Talvez tenha sido o pão, talvez os miseráveis, talvez o fato de eu ser um nordestino em uma terra estranha, talvez tenha sido o Prof. Bohr, eu não sei, a cabeça opera de maneiras incomuns pela manhã, mas o fato é que a minha, depois de encadear os pensamentos Bohr-frio-pão-miseráveis, entendeu que o próximo pensamento não podia ser outro senão aquele sobre a construção de Brasília. Eram uns outros nordestinos em uma outra terra estranha. Naquele tempo, Brasília ficava mais longe do nordeste do que a Noruega. Ao lembrar daqueles trabalhadores, vieram-me as palavras “fome, sede e medo”. Notei então como essas palavras conectam-se, como são capazes de gerar um contexto, como se algo fluísse por entre elas, uma linha em comum que faz com que as palavras mostrem algumas faces distintas de um objeto mais fundamental, um outro objeto, uma coisa maior assim que eu não sei chamar pelo nome porque não sei o nome que tem. A simetria adicional consoante-vogal-consoante presente em fome-sede-medo traz um compasso, um ritmo, que, de certo modo, ajuda a fluir aquela coisa que flui entre as palavras. Alguém precisa começar a dar nome a essas coisas. Todas as palavras são estranhas e esse texto acaba por aqui porque acabaram-me as palavras antes mesmo de começar o texto. Vai ser um quase-texto.